Quando lambi a panela

      Nem um pouco chateado, triste, deprimido, raivoso, desequilibrado, nem se quer estressado. Eu só estava chegando em casa quando um canário cagou em mim e eu disse ''Filho da puta!''. Estava lavando a louça suja quando vi um caminho de formiga e chinguei um palavrão para cada uma que matei.
        Eu acimento o meu quintal. Ponho plásticos coloridos em vasos de barro sintético. Como no Mcdonalds não pelo brinquedinho. Chamo o mickey de rato. Troco o doce do açúcar pelo amargo do adoçante. Acho duente as fadas, um não fado acreditar em duendes. Odeio areia de praia. Durmo cedo porque quero. Não desenho. Não acredito que me darão presente no natal. Compro chocolate na páscoa. Sonho em voar - para França. Prendo a cegonha num saquinho, amarro e jogo no lixo. Tenho alergia a tintas. Tenho nojo de piscina. Não suporto aniversário. Indico um psiquiatra para quem fala só. Não canto no chuveiro. Odeio cozinhar. Não apago com o dedo. Não me apaixono, noto afinidade. Troquei o sonho da casa na árvore pelo da casa na Barra.

Não sou mais o mesmo, nunca somos os mesmos, entendo, corrijo. Não tenho mais a mesma alma, a mesma sensibilidade, a mesma inquietude, a mesma felicidade. A TV, o jornal, meus pais,meus vizinhos, meus colegas e meus tios chatos, todos levaram, levaram tudo de original, me deixaram em cacos colados. Hoje tenho a frescura da vó, o preceito do pai, a namorada do tio, o filho da mãe, a chatice do primo, o preconceito do vizinho, a banalidade da TV, a crueldade do jornal e a beleza da revista. Hoje sou HOMEM, hoje estou amadurecido. Passei no teste, hoje sou escutado por outros homens, hoje eu tenho um lugar de valor entre tantos como eu. Não é? Hoje eu sou só mais um.

Foi quando lambi a panela de doce escondido dos meus filhos que percebi o que me furtaram.

Wes B.