sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Passagem

Andava com toda humildade dispensada possível, naquele dia eu caminhava como quem acabara de ganhar na loteria. Não tinha tantos motivos, mas estava com meu salário em mãos, estava com grana a torrar, eu, naquele momento, me senti gente. Num país onde muitos nem salário tem, e quando tem nem mínimo é, ou é 1 mínimo para 4 pessoas ou mais, um salário em mãos me fez erguer cabeça, não por desprezo aos que não tem, mas por igualdade aos que sempre receberam.
Caminhei por toda rua principal, rodei algumas lojas, fiz questão de olhar produtos e observar coisas que jamais compraria. Tomei sorvetes de 3,50 a bola. Bebi chá inglês de 8 o copo. Tortas de 10 a fatia. Água magnetizada de 5 o gole. Chocolates de 20 a barra. Pouco me importou o quanto já havia gastado e quanto viria a gastar, mas me importava com uma única coisa: não gastar. Eu trabalhei muito, aturei assalariados durante décadas e se não lavei bunda alheia foi por falta de sujeira exposta. Nunca pensei, em fazer justiça, não era capaz desta proeza, sonhei muito com tal situação, confesso, mas não queria perder meu posto ao correr por algo que mais uns cinco, em um milhão, correm também. Não me importava com ninguém, poucos se importaram comigo, e muitos esses foram pagos para isso. Estava eclodindo. Podia até utilizar palavras bonitas e corretas que antes eram condenadas por todos no momento em que as deixava vazar. Já falava sem a ingerência do povaréu, a pragmática atual era privilegiada. Escolhi um casaco de couro, belo e caro, paguei.
Sai das loja com 5 sacolas de compras. Com chapéu, óculos, roupas finas e bota. Andei em direção ao carro quando na calçada, de longe, avistei algo esponjado e encostado na parede. Pensei atravessar a rua, mas continuei, caminhei como antes. Ao me aproximar com total indiferença, percebi que era uma senhora de cabeça baixa, vestido longo e um pedaço de pão na mão, quando me viu aproximar suavemente recolheu as bordas de seu vestido permitindo a minha passagem. Aquela senhora pobre, miserável, recolheu as bordas de seu vestido para minha passagem. Aquela senhora pobre e miserável recolheu as bordas de seu vestido para a minha passagem. Para a minha passagem aquela senhora pobre e miserável recolheu as bordas de seu vestido. Quando vi, abaixei e a olhei nos olhos. Disse-me, ela, delicadamente: - Com licença, assim atrapalhas a passagem dos outros, por favor!

Wes B.

Um comentário:

Via do Engenho disse...

Vou passar dias
_pois nisso me conheço bem_
divagando-refletindo-repensando
sobre o homem e o que é seu
e sobre as bordas do vestido
sobre as bordas recolhidas do vestido
e a senhora que as recolhe
sobre o ato recolhido,
e não vai nada adiantar pedir
...com licença...assim atrapalhas...
que o pensamento ainda vai ficar lá:
este remexeu meu lodaçal...

''(...)Ninguém quer confissões aqui.
É mesmo melhor continuar escrevendo
essas frases curtas, que assim amontoadas, dão um ar de coisa, coisa pensada,
e nem é, sabe? nem é importante...
Só um pouquinho importante,
um pouquinho,
como se ela bebesse um copo de uísque
e fumasse um marlboro e mandasse uns 3 tomarem no cu,
é mais ou menos isso,
isso aqui,
que não pretende ser confissão, nem lembrança,
nem emocionante, nem inteligente, nem valerá a página
que será impressa.
Tem a premência de salvar, mas não é uma bóia, não provoca epifânias, e por isso nem é inspiração.
Não provoca nada.
Ocupa. Aqui todo mundo precisa estar ocupado,
quando dá essa vontade louca de morrer, é bom fingir ser um poeta. É. É melhor continuar escrevendo.
Pronto. Ela já não quer mais se matar.
Por enquanto acredita, acredita mesmo,
ser indispensável.''

(Fernanda Young - Dores do Amor Romântico)

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